Entre dois países e uma separação anunciada
- Fe Matos
- 19 de ago.
- 3 min de leitura
Clara e Miguel entraram na videochamada com expressões diferentes. Ele parecia animado, até demais. Ela, contida, olhava para a câmera como quem não sabia se queria estar ali. Tinham se mudado há poucos meses para Berlim. Ele, por uma oportunidade profissional sonhada. Ela, por amor e, um pouco, por obrigação. O tom dela já dizia mais do que as palavras; Clara estava ali, mas não presente.
“Era pra ser uma nova fase”, começou Miguel. “A gente precisava sair daquela mesmice.”
Clara o interrompeu: “Eu só vim porque achei que podia funcionar pra gente. Mas a gente já não existia antes da mudança.”
Nas primeiras sessões, os dois se referiam ao relacionamento no passado. Como se estivessem relembrando uma história que já terminou, mesmo dormindo sob o mesmo teto. As queixas eram pequenas, cotidianas (sobre a louça, os horários, os silêncios)... a verdade é que havia uma tristeza mais profunda: a sensação de que tinham se perdido no caminho. Ou, mais precisamente, em caminhos diferentes.
Miguel se jogou de cabeça no novo trabalho. Estava encantado com a cidade, a rotina, o novo idioma. Se sentia vivo. Clara, por outro lado, se fechou. Longe da família, sem um círculo social, e com a carreira pausada, entrou em colapso. “Eu acordo sem saber quem sou. Não sinto vontade de sair. E parece que ele nem percebe.”
Quando começamos a nomear os estados do sistema nervoso, ficou claro: Miguel havia ativado o simpático, estava em modo de performance, resolução, adaptação. Sempre em movimento. Clara estava afundando no dorsal, colapso, desconexão, cansaço. Ela dizia “não tenho forças”, mas o que o corpo dela dizia era “não adianta”. Os dois estavam em estados sensoriais opostos, e por isso, não conseguiam se comunicar.
Lembro da sessão em que Clara disse, com a voz trêmula: “Sinto que perdi meu lugar. Não sou daqui, não tenho rotina, e quando olho pra ele, é como se estivesse vendo um estranho.” Miguel respondeu de forma defensiva: “Eu tô tentando manter a gente. Se eu parar, desmorono.” Mas algo na voz dele também começou a tremer.

Propus um exercício simples: que cada um falasse o que estava sentindo, sem interrupção, e depois o outro repetisse com suas próprias palavras, não para responder, mas para se certificar de que havia escutado. Clara falou da solidão. Miguel repetiu, sem sarcasmo: “Você se sente invisível.” Ela chorou. Foi a primeira vez que ele olhou para ela sem tentar resolver, só ficou ali, presente.
Essa pequena prática abriu espaço para outra forma de estarem juntos: uma onde a corregulação não dependia de respostas certas, mas de presença segura. Experimentaram novos rituais, um chá à noite, um passeio no domingo sem celulares, uma regra de que não resolveriam nada importante após as 22h.
Começaram também a nomear seus estados conforme os ensinei sobre a teoria polivagal, referenciando, identificando os seus sistemas nervosos... “Tô no modo fuga”, dizia ele. “Tô meio congelada hoje”, dizia ela. E em vez de se culparem, começaram a se oferecerem como apoio: um toque, um olhar, um silêncio com ternura.
O sexo ainda não voltou com naturalidade, mas os corpos já se permitiam encontrar no sofá, nos pés entrelaçados, nas mãos que se procuravam. O Eros, como energia de vínculo, começou a retornar, não como paixão explosiva, mas como gentilezas cotidianas.
Na última sessão antes da pausa das férias, Clara disse: “Sabe o que mudou? Agora a gente sabe quando o outro está ausente. E, mais importante, sabe como voltar.” Miguel sorriu, pela primeira vez com suavidade: “A gente não tá salvo, mas acho que estamos no mesmo barco de novo.”
Nem sempre uma mudança de país quebra um relacionamento. Às vezes, só expõe o que já estava frágil. Mas também pode revelar o quanto ainda há de vida quando dois corpos decidem se escutar de verdade.
Porque o amor, às vezes, precisa de idioma novo.
E esse idioma começa no corpo.
Fe Matos
Tenho trabalhado a questão do corpo e da voz do corpo em mim. É muito potente. Achar o caminho de volta é muito satisfatório e estar no mesmo barco com seu companheiro e ter consciência disso é outro lugar de conexão. Achei o texto excelente.
Excelente. Teve a sensibilidade e a exatidão de falar de algo que é muito encontrado em casais modernos. Com precisão.
Por mais casais assim que buscam melhorar o relacionamento. Não querem desistir, que tenham consideração pela vida que viveram. Óbvio que altos e baixos vão existir na vida individual e entre casal. Um interfere no outro. Mas a coisa mais linda que li foi "mais importante, sabe como voltar". Amor é uma escolha. Você querer voltar ou não. Obrigada Fê. Ainda há esperança.