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Carta No 1 - Para a Mulher por Trás do Pastel das 5h da Manhã.


Colagem - Jogo Sociedades Sintônicas - Família Real
Colagem - Jogo Sociedades Sintônicas - Família Real

Querida Bisa,


São exatamente 5h21 da manhã e mais ou menos uns 45 anos depois das manhãs de férias que passávamos na sua casa. Aquele cuco que batia na sala marcava o início do dia e dos seus primeiros passos. Via você passar para cozinha e lá eu corria para ter com você as poucas memórias que fixei. Lamento por não lembrar as suas palavras; lamento por ser como um retrato embaçado as histórias que contava de manhã, entre o mármore branco gelado onde você me punha para sentar, tomar o leite com café na xícara branca com jogo da velha dourado, do lado da massa de pastel que você amassava com o rolo e a farinha.


Eu te lembro pelos cheiros: do café passado cedo, do leite fervendo sem poder derramar, do bolo feito sem pressa, do avental limpo e gasto, das mãos quentinhas, do abraço e colo na sua cama. Mas queria lembrar mais...


Te conheci nas falas da minha mãe, que tinha em você todo o porto seguro dela. Te conheci sem te conhecer de verdade, só na versão domesticada da bisavó amorosa, da mulher fofinha que cuidava, aquecia, esperava.


Mas hoje, aos poucos, como se puxasse fios de uma colcha de retalhos muito antiga, eu começo a vislumbrar a mulher inteira que você foi, não só a doce senhora que sorria silenciosamente e aconchegava os bisnetos.


Porque antes da penteadeira cumprida repleta dos seus frascos antigos de perfume, da sua cama de colchão duro, do seu cheiro de naftalina, do seu colo de bisa, sei que existiu uma menina. Uma menina de olhos esverdeados, com a pele marcada de sal e vento, que atravessou o Atlântico num navio qualquer, deixando em Portugal uma infância e uma outra bisa. Uma menina obrigada a virar adulta cedo demais. Uma imigrante.


E isso, Bisa, eu nunca te agradeci.


Nunca te agradeci por ter atravessado o desconhecido, o medo e o mar. Por ter feito sobreviver toda a nossa família. Por ter deixado a sua terra, sua língua empoeirada de sotaques, suas raízes plantadas fundo em um chão que não te garantia quase nada. Você veio para o Brasil com a roupa do corpo e o silêncio de quem estava prestes a entender que ser menina-mulher e estrangeira é ter que ser duas vezes mais forte, mesmo que não se diga isso em voz alta.


Obrigada Bisa.


Por que não me lembro de toda a história de sua partida da sua terra natal? Eu era pequenina e acho que dormia logo que você começava a narrar... nunca me atinei que você foi corajosa... que você foi exilada, deu a volta por cima e recomeçou... que você era sonho e suor... que você resistiu sozinha...


Será que era porque era mais fácil manter a imagem da mulher doce e quieta do que enxergar a imigrante resiliente, que carregava sacolas e esperanças ao mesmo tempo? Acho que você nos protegeu o tempo todo com açúcar e com afeto nos tornando prediletos... (você gostava de Chico Buarque? Qual música você gostava?)


Eu gostaria de ter te conhecido antes da saudade te envelhecer, na verdade, eu queria ter te conhecido agora, com a maturidade que me bateu a porta.


Eu queria te perguntar como foi deixar a sua casa, quem foram sua mãe, vó e bisa, quais sentimentos você superou. Te ouvir falar do cheiro das ruas de Lisboa. Te ver cortar cebola e contar histórias da sua infância, misturando português antigo com palavras brasileiras inventadas. Te ouvir dizer que o amor nem sempre salva, que os sonhos precisam existir sempre, mas muitos serão diferentes, que filhos erram, não pedem desculpa, nos preocupam e voltam, porque mesmo numa pequena família, na nossa pequena família, há força e amor. Queria te ouvir: tenha paciência e fé minha bisneta.


Eu queria saber como foi ser mulher nos anos 30, 40, 50. Como foi fazer 30, 40, 50, 70, 85 anos... Como era o seu corpo na juventude, como era o seu brinde nas festas, o que você pensava enquanto estendia lençóis no varal. Você chorava escondido? Você ria com amigas, aliás, você teve amigas, como as fez, quem elas eram? Teve sonhos seus que ficaram soterrados por não caberem dentro da vida imigrante e dentro do casamento?


E o amor? Como era o amor no seu tempo? Você amou em segredo? Teve desejos que não confessou nem para si? Você e meu vô foram felizes em algum tempo? Como vocês se conheceram? Como foi perdê-lo para a morte?


Queria te ouvir falar sobre cansaço. Sobre esperança. Sobre o que ficou lá e o que você se obrigou a deixar ir. Sobre o envelhecer. Sobre as saudades da gente. Sobre o medo da falta do dinheiro, sobre a besteira que é ter esse medo. Sobre abandono. Sobre família. Sobre a morte.


Na minha fantasia, você me contaria tudo isso com as mãos mergulhadas na massa do pastel, entre carne moída e azeitonas. Me ensinaria receitas e palavras. Me olharia com orgulho e diria: “Vai, segue em frente. Tropeçou, levanta. Trabalha mas contempla. Viva o mundo. Seja leve. Uma hora tudo fica bem, desfruta mais. Cozinha mais. Não se esquece de onde você veio. Você nunca estará sozinha. Você também me tem. Eu tive que sobreviver, mas você pode bem-viver. Eu te liberto dos meus pesos e pesares. Eu te abençoo."


Porque eu vim de você, Bisa. Do seu ventre invisível que costura minha linhagem feminina. Do seu instinto de sobrevivência. Da sua coragem silenciosa. Dos sacrifícios que você fez e que ninguém anotou, mas que eu sinto no meu sangue.


Hoje, as 6h08 vejo você bisa, uma mulher cheia de lutas, lutos e exílios, eu vejo que seu corpo foi território de travessias. E que meu corpo carrega parte do seu e da sua história migrante. E que talvez esse impulso que eu tenho de acolher quem parte, quem perde, quem se perde, venha de você. Talvez a pergunta que me coça a mente "Onde Você Habita?" seja eco da sua voz. E na sua voz, você responderia: "Habito-me. Habita-te, minha bisneta."


A você, bisa amada, que talvez tenha chorado em português e sorrido em brasileiro; a você, que tanto cozinhou para nós e para desconhecidos; a você, que foi tão sozinha e nunca desistiu; a você que trabalhou, que teve sua filha revirada, sua neta "roubada", sua bisneta alienada, que fez daquela casinha no subúrbio carioca uma liturgia sagrada de pertencimento, mesmo quando tudo ao redor e dentro era estrangeiro, para você e para mim... que saudade vovó...


Eu te escrevo essa carta que nunca será enviada para te resgatar do esquecimento suave das fotografias. Para te dar voz. Para te chamar pelo nome que ninguém mais pronuncia.


Floripes.


Mulher inteira, imigrante, solitariamente guerreira. Que soube amar com gestos, que rezava baixinho, que fazia do fogão um altar de afeto. Que, sem saber, me ensinou que os vínculos não morrem, eles apenas mudam de endereço. Que solidão não mata, espera.


Hoje eu escrevo como se eu rezasse. Como se colocasse flores no altar da ancestralidade. Como se puxasse uma cadeira ao seu lado e dissesse: “Me conta tua história, Bisa. Tô pronta pra ouvir.”


E você me contaria, tenho certeza.


E talvez, com um sorriso de quem sabe mais do que diz, você diria:


“Não faz mal eu ter sido lembrada só pela doçura. Mas obrigada por ver o resto também.”


Com amor, com memória e com reverência,


tua bisneta,

a que não gosta de café e nem leite, mas ama pastel,

a que deseja pertencer como você sempre fez acontecer,

Até mais ver.

Te amo.

6 comentários

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Dione Resende
Dione Resende
06 de ago.

Que texto lindo, Fernanda! Termino a leitura chorando, emocionada, lembrando da minha avó querida. Pensei em também escrever uma carta a ela falando da minha gratidão. Obrigada!

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Fe Matos
Fe Matos
19 de ago.
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Ah meu coração fica aquecido de saber que o texto te tocou... escreva sim, e né conta como foi, o que te gerou de emoções e insights. Beijo grande

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lucialupeti
06 de ago.

Que texto emocionante! Me fez viajar na minha própria história, dos meus avós migrantes vindo da Espanha e Itália para o Brasil. Especialmente minha avó Amélia que sempre me esperava com bolachas cobertas de açúcar de confeiteiro. Gratidão 🙏 por esse momento lindo!

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Fe Matos
Fe Matos
19 de ago.
Respondendo a

Que legal que vc aproveitou Lucia! É tão bom conhecer nossas raízes e reconhecer o que fizeram né. Fico feliz que o texto te inspirou! Bjim

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Juliana Raíssa
Juliana Raíssa
05 de ago.

É maravilhoso reconectar com o nosso passado. Muitos fizeram tanto para gente estar aqui, respirando... Honrar nossos antepassados é um belo gesto para nós prolongar nosso futuro. Entender e compreender faz toda a diferença para gente.

Linda história, Fê. Nossas matriarcas sempre foram guerreiras.

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Fe Matos
Fe Matos
05 de ago.
Respondendo a

Guerreiras que nos passaram o bastão! Abriram caminhos e muitas vezes deixaram mais acessíveis para nós. Obrigada por você sempre estar aqui compartilhando suas reflexões, Ju. Boa semana! Bjim

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