Carta No 2 - Para o homem das estrelinhas e dos papéis de seda.
- Fe Matos
- 7 de out.
- 5 min de leitura
Atualizado: 11 de out.

Querido Bisavô,
É domingo e estou na casa da minha mãe, com meu irmão mais velho. Já passou das 4 da tarde, quando ouço seu famoso grito de “Gooollll” (do Flamengo) e, de repente, sou transportada para outras tardes, não apenas aos domingos, mas há uns 45 anos, nas nossas férias de infância no Rio, ao seu lado, vovô.
Que saudade de passar pela porta do seu quarto e te encontrar sentado à mesinha redonda, com as pernas magras e cruzadas, as mãos grandes, os dedos finos, a pele toda enrugada. Um cigarro aceso no canto da boca, outras guimbas acumuladas no cinzeiro, e o abajur amarelando o ar nevoado de fumaça, que parecia não ter cheiro, pois eu só me apercebia de você, vovô, escutando o radinho de pilha vermelho que sussurrava o jogo do Fluminense. Eu deveria ter te desenhado... teria sido possível criar um retrato vivo do meu bisavô, que colecionava gols, guimbas, manias, gestos e silêncios.
Eu te recordo pelas gavetas. A última da cômoda guardava verdadeiros tesouros: papéis de seda de várias cores, que viravam pipas para meus irmãos soltarem. Eu, que nunca soube fazer isso sozinha, sabia que com você, vovô, tudo voava mais fácil. Lembro também das serpentinas em rolos guardadas ali. E, dentro de uma caixinha de papel, um milhão de estrelinhas feitas dessas serpentinas. Como eu queria voltar a fazê-las, vovô. Lembro de você me ensinando a conectá-las de tantas formas, formando caixinhas pequenas, maiores, porta-trecos, porta-joias. Tenho certeza de que foi você quem me ensinou a amar caixinhas e papéis, e a construir o mundo com paciência infinita.
Você me mostrou que colecionar era guardar histórias em pequenos objetos; que cada selo, cada cor e cada dobra tinha sua própria memória. Recordo agora dos dias em que me levou até aquela praça imensa no Rio, onde selos do mundo inteiro moravam em envelopes de seda. Os meus preferidos eram os da Turquia e os das Olimpíadas. Ali, você me ensinava que o mundo cabe na palma da mão, dentro de um pequeno quadrado de papel, sendo pinçado cuidadosamente, com aquela pinça cumprida que você me deu. Lamento ter doado nossos selos. Me dá vontade de recuperá-los.
Mas vendo por outro lado, vovô, os selos nunca se foram de mim. Como eu gostaria de te contar que eu criei meus próprios selos. Que eu encontrei uma arte ao longo da vida, com um grupo de mulheres muito sensíveis: Arte Postal. Escrevendo isso agora, vou logo mandar mensagem para voltar ao grupo. É muito legal, vovô, porque recebo selos e postais do mundo inteiro, só falta a praça e você ao meu lado.
E como eu queria te mostrar meu consultório-ateliê... minha sala-de-estar-de-costura... Porque, se havia alguém que me inspirava a criar com as próprias mãos, esse alguém era você! Em todas férias, os kits de desenho estavam a minha espera. Você me dava cadernos, lápis e aquelas réguas redondas que giravam e ao repetir o movimento circular, formavam-se esferas e mandalas. Não me lembro de nenhuma palavra sobre como melhorar meus desenhos, nenhuma crítica aos meus traços infantis. Seu elogio e incentivo eram sempre gestuais e silenciosos.
Eu soube, mas também não soube, talvez porque algo em mim preferisse esquecer, que no final da sua vida você latia para os cachorros do vizinho que latiam, perturbava a bisa e a vovó, talvez por vergonha que você as fazia sentir, talvez por estar confuso e envelhecendo, ou talvez oprimido demais. Essa imagem me atravessa. Não sei se era brincadeira, solidão ou resistência. Talvez fosse sua maneira de conversar com o mundo, que já não respondia como antes. Não me lembro do seu falecimento, não sei como você morreu. Mas o que jamais esquecerei é da sua silenciosa presença.
Não te conheci nas histórias não contadas, pois parece que nossa família, vovô, valoriza muito o silêncio e o isolamento... Mas te reconheço em minha própria vida e mente, te lembro e te reinvento: um homem de olhos pequenos, doce e misterioso. Se fosse rico, seria elegante, com rádio e cinzeiro, papel de seda e mandalas, transformando o simples em universos. Um homem que me mostrou, sem precisar filosofar, que colecionar é amar o mundo em fragmentos.
Hoje, ao escrever, me dou conta de que você não foi apenas o bisavô de pernas cruzadas e fumaça no ar. Antes de tudo, você foi um menino. Magro, talvez solitário, que aprendeu a colecionar para não perder, pois também perdeu muito ao vir para o Brasil. Será que soltar pipas ou unir as estrelinhas era uma forma simbólica de resgatar o que ficou na Itália?
Eu gostaria de ter te conhecido com a maturidade que tenho hoje. Queria perguntar como era a Itália, como eram seus pais italianos, como a gritaria típica foi se calando ao se abrasileirar. Quais foram as suas perdas, vovô, o que você guardou em segredo? Gostaria de saber se você amou muito, se respeitou minha bisa como mulher, ou foi mais um homem mulherengo e perdido? E minha bisa, ela te respeitou como homem, apesar de ser mais velha que você? Você teve amigos? Gostava de trabalhar, abrindo e fechando portas no hotel? Ao ver os turistas e os selos, você tinha vontade de viajar e conhecer o mundo? Queria retornar à Itália? E o latir para os cachorros, seria código, um desabafo ou um sinal de loucura?
Na minha fantasia, você me responderia com um selo raro na mão e me diria que colecionar é uma forma de não morrer, que pipa, selo e estrelinhas são maneiras de guardar vento, cores e o mundo. Que solidão não é ausência, mas um espaço para existir, sem pressa ou julgamentos. E talvez você me dissesse hoje: “Desenha, minha bisneta. Coleciona. Voa. Vive. Não acumule só coisas, acumule encontros. Viaje à Itália por mim. Abra outras portas, de outros hotéis.”
Porque eu também sou feita de você, vovô. Da sua mão que recortava e colava, do seu olhar que via longe, em quadradinhos, dos seus sonhos e das suas estrelas. Seu corpo magro era cheio de trajetórias que ninguém escreveu. Carrego o seu olhar colecionador dentro de mim. Talvez por isso eu escreva cartas não enviadas: porque você me ensinou que a vida cabe em pequenos pedaços e que as ausências também podem ser cuidadas.
Hoje, às 18h de um domingo qualquer de 2025, escrevendo, sentindo e pensando melhor, vejo você como um homem cheio de perdas, um colecionador de fumaças, de pequenos mundos, de imagens sem palavras. Vejo sua mesa redonda como um altar, seu cinzeiro como uma ampulheta e seu rádio como uma companhia. Seu corpo foi território de memórias guardadas em envelopes de seda. E vejo que, de alguma forma, sigo seus gestos: guardo histórias, faço estrelas, crio caixas de palavras para que o esquecimento não leve tudo.
A você, vovô, que talvez tenha se perdido e perdido a vontade de voar com as próprias pernas, que tenha se calado demais, que tenha murchado em magreza e até tristeza, declaro minha gratidão e minha saudade.
Escrevo esta carta que jamais será enviada, para te resgatar do esquecimento, para te dar voz dentro de mim, para te chamar pelo nome que ninguém mais diz:
Hermínio.
Homem imperfeito, forjado numa sociedade machista, colecionador de silêncios, artesão de ilusões, que me ensinou a sobreviver na solidão. Se eu pudesse eu puxaria uma cadeira ao lado da sua e te diria: “Me conta tua história, vovô Hermínio. Por que tantas estrelinhas?” E você me contaria, tenho certeza. E talvez, com um sorriso que revela mais do que diz, você me diria: “Não faz mal eu ter sido lembrado só pelos meus papéis e selos. Mas obrigado por ver o resto também.”
Vovô, dizem ao meu redor, que dentro de mim, existem muitas partes e habilidades, você, vovô Hermínio, é uma das minhas prediletas, a minha parte-companhia-parceria-artesã.
Com amor e reverência,
Sua bisneta,
A que não fuma, é flamenguista, mas não acompanha futebol,
que desenha mandalas, faz selos e conversa com os animais,
A que deseja pertencer a si mesma e a você, vovô.
Até mais ver.
Te amo.













Comentários